sábado, 26 de dezembro de 2009

"Em toda tradição religiosa existe uma prática de devoção, e outra de transformação. Devoção significa confiar mais em nós mesmos e no caminho que seguimos. Transformação é praticar as coisas que este caminho impõe.
Quando você diz: "Estou determinado a estudar medicina", esta frase exerce um impacto na sua vida, mesmo antes de se matricular numa escola. Você vê este passo como algo positivo, e quer avançar em direção a ele. O mesmo acontece em qualquer tradição religiosa.
A chave é a plena consciência. Quando você bebe um como d'água profundamente, com todo o seu ser, a iluminação está presente em sua forma inicial. Estar iluminado, é sempre ter a visão clara a respeito de alguma coisa."

(Adaptado do livro Vivendo Buda, Vivendo Cristo, Ed. Rocco)

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Por que Afrodite ameaça tanto a sociedade patriarcal? (Parte II)

O Nascimento de Afrodite

“Na época da criação dos primeiros deuses, Gaia, a Mãe-terra, e Ouranos, o Pai Celeste, haviam dado à luz muitos filhos divinos. Dentre os últimos a nascer estavam os Titãs, filhos monstruosos que odiavam o pai. De modo que Ouranos lançava-os de volta à pobre Gaia cada vez que um surgia.

Finalmente, um dos filhos mais jovens, Cronos, que também odiava o pai, voltou-se contra Ouranos e castrou-o com uma foice de pedra que Gaia fizeram especialmente para castigar seu cruel companheiro. Sem atinar, Cronos lançou então o membro decepado por sobre os ombros, e este caiu por terra. Das gotas ensangüentadas brotaram as Fúrias e os Gigantes, mas o membro genital caiu em tormentoso mar, onde foi carregado pelas ondas.

Da espuma que se formou em torno do pênis decepado foi crescendo uma menina. Ela foi primeiro levada pelo mar até Citera, e depois para Chipre, sempre envolta pelas ondas. Lá a linda deusa aportou com seus dois companheiros, Eros, cujo nome significa Amor, e Himeros, cujo nome significa Desejo. Quando tocou terra firme, a relva brotou debaixo de seus pés. Seu nome, para os mortais, era Afrodite, que significa “nascida da espuma”. (Hesíodo)

O mito nos diz que Cronos, filho de Gaia, a Terra Mãe, lançou no oceano os órgãos genitais arrancados de Ouranos. É chegado o tempo (Cronos) de tomarmos a tirania dos céus, o domínio do mental, impotente. Cronos era um deus da agricultura, de modo que sua sabedoria e poder pertencem a terra, juntamente com sua mãe Gaia. Na realidade, porém, ele ajuda a derrubar o pai tirânico não apenas para a terra, mas para a água. Vemos aqui o desenrolar de um drama cósmico dos elementos: terra, ar e água. O resultado da supressão da terra pelo ar é um novo nascimento vindo da água – Afrodite. A água costuma representar sentimentos e empatia na linguagem mitológica e onírica.

Como a maioria dos pais tirânicos, Ouranos passa a temer que seus filhos também queiram um pouco de ação, de modo que procura impedir que nasçam. Mas assim perde completamente contato com a Mãe Gaia, a consciência da terra e o mistério da procriação. Seu castigo é perder a própria falicidade, a capacidade de gerar algo novo. A consciência celeste torna-se impotente.

Mas devemos reparar bem no que acontece com os órgãos genitais perdidos, que se transformam no oposto dele. De uma tirania encarquilhada, esfacelante e masculina nasce uma bela jovem, inocente e feminina. É um milagre, o milagre da reversão dos opostos psíquicos. Quando ocorre uma inversão radical assim, significa psicologicamente que há uma necessidade enorme de compensação. Hoje, como na Grécia antiga, a abundante sexualidade Afrodite aparece como uma reação a um controle mental excessivo vindo de cima por parte do masculino.

Significa também que o patriarcado não pode pretender controlar a natureza essencialmente expansiva da energia feminina. Suprima-se a fecundidade da terra (Gaia) e ela ressurgirá novamente no tempo (Cronos) como uma energia erótica vibrante (Afrodite).[1]

Afrodite, certamente, não foi grega desde o início. A maioria dos estudiosos hoje a consideram uma descendente da deusa sumeriana Ishtar (mais tarde Astarte, na Babilônia), que era ao mesmo tempo uma deusa do amor e a rainha suprema do céu. Em seu culto estava presente a idéia do poder unificador e gratificador de Eros, acorrentado e corroído numa civilização doente.[2] A santificação do Eros e da procriação. Afrodite é o arquétipo da sexualidade e da sensualidade, do Eros livre. Não é virgem, pois valorizava as experiências emocionais e os relacionamentos, mas não como permanentes e duradouros. A eterna amante... Por se amar, tudo nela transpira amor.


[1] (A Deusa Interior – Um guia sobre os eternos mitos femininos que moldam nossas vidas, Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger)

[2] (Eros e Civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, Herbert Marcuse)

sábado, 7 de novembro de 2009

Por que Afrodite ameaça tanto a sociedade patriarcal?

O que é tão perigoso na sexualidade de Afrodite? Por que ela é tantas vezes retratada como uma sedutora , uma bruxa, uma mulher fatal? Para os gregos, ela era a feiticeira Circe, fascinando os companheiros de Ulisses e transformando-os em porcos. Para os primeiros padres cristãos, a mulher sedutora era o próprio epítome do pecado. Na Idade Média, havia as perigosas náiades, ou ninfas da água, que fascinavam os cavaleiros errantes e os desgraçavam até a morte. Mais recentemente, tivemos uma Anna Karenina arrastando seu amante, Vronski, à objeção social e ao exílio, ou uma Hester Prynne marcada com a letra escarlate. Hoje em dia, as novelas de televisão estão repletas de sereias cavadoras de ouro que vivem arruinando reputações com seus estratagemas.

E a isca é sempre o fascínio sexual, a que os homens parecem ser totalmente impotentes para resistir. Os gregos racionalizavam a sua paranóia conferindo a Afrodite uma cinta mágica capaz de desarmar todos os homens e deuses que a ameaçassem.

Todavia, há algo altamente suspeito nesses exemplos – em todos eles, os homens são apresentados como vítimas. Vitimas de seus próprios sentimentos não admitidos talvez, mas certamente não vitimas efetivas das mulheres. Isso tudo cheira muito a culpa deslocada. Pois, se houve algum grupo social vitimado no Ocidente patriarcal, foram as mulheres.

Existem, a nosso ver, dois fatores atuando: o medo que os homens têm de perder o poder e um horror ao corpo. A questão do poder remonta à grande passagem da família matrilinear para a família patrilinear há muito tempo, muito tempo atrás. A questão do corpo é mais recente, tendo se originado na propensão ascética do cristianismo.

“A depreciação relativa da mulher de verdade é [...] compensada por impulsos demoníacos [do inconsciente, que ressurgem] projetados sobre o objeto. Num certo sentido, o homem ama menos a mulher como o resultado dessa depreciação relativa – e assim ela lhe aparece como uma perseguidora, i.e., uma bruxa. Daí a fantasia medieval sobre as bruxas, essa mácula inextirpável sobre o final da Idade Média, surgida paralelamente a – e, na realidade, como um resultado da – intensificação da adoração da Virgem” (Psychological Types, Jung)

O outro grande fator que está por trás do medo patriarcal de Afrodite é o horror ao corpo inculcado pelo cristianismo. O primeiro culpado, por consenso comum, foi São Paulo. A obsessão de Paulo era impedir a fornicação e, a seu ver, era este o principal valor do casamento. Embora achasse muito preferível manter-se sublimemente celibatário como ele, sempre que a carne se mostrar fraca é melhor, em suas palavras imorredouras, “casar-se do que arder” (I Coríntios 7:9) – o “arder” referindo-se, é claro, à concupiscência!

Paulo e aquele outro gigante espiritual e misógino, Santo Agostinho, lograram estampar o cristianismo e o Ocidente com uma aversão ao sexo e ao corpo da qual nós nunca conseguimos nos recuperar plenamente. (“Vim para Cartago, onde de todos os lados fervia a sertã de criminosos amores”, escreveu ele descrevendo os anos de tentação).

No final do século III, começou-se a discutir o celibato dos padres. O debate durou quase mil anos, até que a autoridade papal resolveu-o em favor de São Paulo. Um dos principais argumentos era que o contato sexual com uma mulher poderia profanar os santos sacramentos.

Ao longo dos séculos, uma série lúgubre de equacionamentos foi se estabelecendo na mente dos cristãos: Mulher = terra = sujeira = sexo = pecado. A queda do homem deveu-se a Eva, e a Igreja nunca deixou de advertir os homens de que é a mulher irá levá-los pelo primrose path to hell, como dizem os americanos, o caminho florido que leva ao inferno – curiosamente, Afrodite é a principal deusa das flores.

(A Deusa Interior, Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger)

domingo, 4 de outubro de 2009

Casamento

Embora a maioria das mulheres na sociedade ocidental moderna tenha consideravelmente mais liberdade do que as mulheres da grécia antiga, as estruturas básicas do casamento não se modificaram tanto assim. É verdade que o cristianismo tornou o casamento um sacramento; porém, excetuando-se as vertents mais liberais do pensamento protestante, o casamento ainda é considerado primeiramente uma instituição para a procriação de filhos. Permanece basicamente patrinilinear. Nem a felicidade sexual das esposas nem os seus direitos idividuais recebem muita atenção de católicos conservadores ou de fundamentalistas religiosos, graças aos séculos de puritanismo e da atitude cristã que ainda considera as mulheres inatamente inferiores aos homens.
A idéia romântica de casar por amor e a expectativa de alcançar uma plenitude sexual provêm exclusivamente dos trovadores da Idade Média e do culto do amor cortesão, não do cristianismo; a Igreja opôs-se fervorosamente a essas noções, tentando sempre impor restrições à expressão erótica. Temos hoje, por certo, uma imagem fortemente romântica do casamento, mas esta é em grande parte uma criação - embora tremendamente influente - da literatura e dos meios de comunicação.
De uma esposa contemporânea ainda se espera basicamente que ela esteja pronta para dar apoio ao marido e ás metas e objetivos dele, não vice-versa. É verdade que nos ultimos anos muitos homens têm se envolvido seriamente na criação dos filhos, e ao menos eles compreendem plenamente quanto tempo, trabalho e dedicação isso envolve. Até o presente, porém, nenhum homem chegou a propor seriamente que as mulheres sejam remuneradas por esse serviço ou que ele de alguma forma constitui uma contribuição economicamente mensuravel para a sociedade. Quando a mulher engravida, ela quase sempre sofre financeiramente no emprego em que ocupa. Tornar-se mãe significa inevitavelmente ser penalizada economicamente.
Em outras palavras, o casamento continua existindo primordialmente para perpetuar a supremacia patriarcal e apenas secundariamente para beneficio das mulheres. O elevado índice de divórcios e a decisão de tantas mulheres seguirem hoje o caminho solitário, tendo uma profissão e mandendo-se solteiras, ou de tentarem equilibrar um emprego e a chamda "produção independente" de filhos, clama em altos brados contra a inadequação do casamento como um lugar de crescimento e plenitude para a maioria das mulheres na fase de evolução em que hoje se encontram.
(In A Deusa Interior, Jennifer Barker Woolger, Roger J. Woolger)


“Se o divórcio aumentou em 1000 por cento, não culpe o movimento feminista. Culpe os papéis obsoletos dos sexos, nos quais os casamentos eram baseados.”
(Betty Friedan)

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O trabalho com o Sagrado Feminino é algo muito belo e trabalha o resgate da força feminina, a reestabilização, a cura das Guerreiras Feridas.
O mundo de relações dinâmicas atuais, de responsabilidades, de paradigmas sociais, de muitos acontecimentos e mudanças, muito tem exigido e afetado tanto homens como mulheres. Falamos muito do feminino, da Guerreira Ferida atual; mas também o masculino tem sentido toda a grande aceleração de mudanças, as consequências das relações e também tem sido o Guerreiro Ferido.
O trabalho com o autoconhecimento, com o resgate da essência, com a harmonização e valorização pessoal é de suma importância. Para as mulheres, o conhecimento dos arquétipos das deusas e o aprofundamento dessa conexão promove o resgate e as forças necessárias para que a luz das deusas interiores voltem a brilhar.


(As Deusas e as Mulheres, Jean Shinoda Bolen)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A deusa ferida em todos nós

Quando Mary Daly descreve em Beyond God the Father como a "imagem do pai" do cristianismo distorceu e tiranizou nossa visão das mulheres no Ocidente, ela está também descrevendo o que Jung chamaria de poder desvirtuante de um arquétipo isolado. Os arquétipos podem chegar a possuir culturas inteiras, tornando-as neuróticas da mesma maneira que um "complexo de pai" pode levar uma pessoa a ser neuroticamente submissa à autoridade, por exemplo.

O que Daly e outras autoras feministas denunciam como o mal do "patriarcado" é precisamente o que os junguianos criticam como sendo o modo pelo qual a civilização ocidental acabou sendo unilateralmente ofuscada pelo arquétipo do Pai, à exclusão do arquétipo da Mãe. Em nossa reverência exclusiva ao princípio paterno, em que suprimimos ou menosprezamos o feminino, acabamos provocando graves danos à nossa saúde psíquica individual e coletiva. Isso sem mencionar a saúde física de nosso corpo e a do próprio planeta Terra.

Mas há sinais indicando que, espontânea e conscientemente, o pêndulo começa efetivamente a oscilar. A supremacia patriarcal vai manifestando sintomas de falência espiritual, e em toda parte - nas artes, na literatura, na política, nas igrejas - há sinais de um enorme ressurgimento do feminino, da consciência matriarcal. Um auspicioso "retorno da Deusa" está certamente ocorrendo.

É urgente, portanto, que compreendamos a natureza e a condição dos arquétipos femininos que estão despontando do inconsciente coletivo da nossa cultura. A primeira coisa que notamos é que, como qualquer pessoa que foi encarcerada, exilada, vituperada e caluniada, as deusas, ao serem restauradas na consciência como princípios psicoespirituais, frequentemente parecem fracas, confusas, magoadas, feridas. Esses ferimentos se devem ao tratamento áspero e cruel que receberam nas mãos da repressão patriarcal: Afrodite envergonha-se de sua sexualidade; Atena questiona sua capacidade de pensar; Hera duvida do seu próprio poder; Deméter desconfia de sua fertilidade; Perséfone nega suas visões; Ártemis não sabe interpretar sua sabedoria corporal instintiva. Isso, e muito mais, é o legado do exílio psquico do feminino.

Devemos prestar atenção especial ao que chamamos chagas das deusas: as mágoas profundas que todas elas sofreram, ferimentos que lhe foram infligidos durante a longa história da batalha psicológica pela supremacia empreendida pelas forças masculinas na cultura ocidental. Não importa se essas chagas surgiram pela primeira vez com a hegemonia guerreira dos gregos antigos, com o imperialismo dos romanos ou com o medo puritano do feminino e do corpo entre certas facções do cristianismo; a nós urge perguntar por que toda mulher moderna carrega dentro de si resquícios da chaga de uma deusa específica que vem apostemando-se há quase três milênios.


(in A Deusa Interior, Jennifer Barker Woolger)

domingo, 13 de setembro de 2009

A mulher livre

"A mulher não tem que se tornar igual a ninguém. Ela tem de pertencer-se. Ela deve libertar-se da imagem que lhe é imposta por uma sociedade dominada pelos valores masculinos. Ela deve, sobretudo não fazer do homem o modelo da sua libertação. Será assim que ela vai criar uma sociedade nova. Quanto ao homem, que ele contribua para libertar a mulher, primeiro e antes de tudo aceitando o sua parte feminina nele próprio. Reconhecendo os valores femininos que em si mesmo esperam expandir-se assim como no mundo. A fim de que possamos juntos construir uma sociedade nova. Esta civilização, não se realizará jamais se nós não permitirmos às mulheres de a criar. O Porvir é das mulheres, porque elas interrogam-se pelos olhos das crianças."

Omraam Mikhaël AIVANHOV

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Sobre a Legalização do Aborto

A questão não é que o aborto é um assassinato de fetos, e sim que ele vem sendo uma das principais formas de assassinato sistemático de MULHERES já que o aborto clandestino é a 4a maior causa de mortes femininas no Brasil e no mundo...

O aborto, sendo proibido ou não, vai continuar acontecendo. E acontecendo nas piores condições... um grande desrespeito à vida da mulher, algo que denuncia o desvalor de seus corpos e de suas vidas nesse país, porque é uma proibição com um custo muito grande pra nós e que serve só pra satisfazer aos machistas e religiosos inconsequentes.

O aborto nunca foi defendido como um método contraceptivo, mas sim como um recurso último se caso ocorrer, a mulher não fique desamparada e morra de hemorragia uterina por ter tentado abortar com agulha de tricô, tomando misturas químicas esdrúxulas ou na vizinha e em clínicas clandestinas sem fiscalização, morram de infecção hospitalar, ou sobrevivam sem um útero, ou inferteis, ou com complicações ginecológicas pro resto da vida...


Há feministas que defendem aborto, há também feministas que são contra, mas não são contra a existência desse direito, mas sim favoráveis a que haja um incentivo maior às campanhas de informação, formação sexual da mulher, disposição de meios contraceptivos e etc. É o que deveria estar acontecendo.

Por trás da proibição do aborto está a lógica patriarcal, em que o corpo das mulheres está nas mãos de um estado controlado por homens, e isso trás a lógica de que os filhos são de propriedade dos homens,assim como o corpo das mulheres, que serve a reprodução de herdeiros, cidadãos guerreiros, proletários explorados, consumidores vazios...

Enfim: quem tem que decidir isso são as mulheres, e não os terceiros...que nunca vão saber como é isso, passar por isso, e SER MULHER...ter um útero e um corpo e a dor de sentir que ele não é seu.

domingo, 5 de julho de 2009

GUERREIR@S DO 234

Assim chamou-se a vitoriosa ocupação da Mem de Sá, e se dizemos vitoriosa, mesmo desalojada, é porque em tempo algum a estupidez venceu as flores).

Bombas de efeito imoral... Coturnos e cassetetes.. . Spray... Meu rosto vermelho de ódio e pimenta! Tanta força bruta, pouco direito, pouca educação... Ordem para os pobres, progresso para os ricos!, alguém já deve ter dito isso antes ...
A constituição rasgada diante dos nossos olhos, a truculência policial desfilando na avenida..., Sete de setembro? Não, despejo. Cacos de direitos humanos pelo chão... Falou-se em cumprimento da lei, mas cumprimento da lei não implica em humilhação e tortura, e se a lei não serve ao povo, e se o povo é a maioria, ora, então de que serve a lei? Era mais que “dever” aquilo, era perversão mesmo, fetiche... Aqueles homens (?) se realizavam em sua violência... Alguns riam... Risos.

Crianças cantavam... Cantavam alegremente. .. Cantavam loucamente.. . E o desespero se misturava ao amor... Cantavam palavras de ordem, cantavam o hino nacional, e também canções religiosas.. . Que importa?! As crianças cantavam, e cantando se formavam numa autêntica Educação para a democracia! De maneira irônica e mesmo heróica os princípios políticos proclamados na LDB se cumpriam, crianças sem casa e talvez sem escola, mas não sem educação.

Sim, aquilo era Educação popular
, um processo genuíno de formação política das classes populares, um ato educativo, pedagógico mesmo. E formando-os, também nos formávamos. Educação com o povo, educação popular.

Agora, detidos e transportados como animais na traseira de um Camburão, dividindo um espaço ínfimo, quase sufocados, no auge do nosso sofrimento, o companheiro Vlad. voltou-me os olhos úmidos e sorrindo, perguntou:

- Como vai a vida, companheiro? Está amando?
- Sim, amo, - respondi - mas não vou bem na faculdade...

E rimos, e assim sublimamos o sofrimento. A luta política é antes uma forma de ressignificar o sofrimento humano. O Vlad. pensou que morreríamos (porque a viatura tomara um destino diferente do informado), eu só queria sair dali, mesmo que fosse para isso - estava sufocando e àquela altura me concentrava em respirar. Em certo ponto daquele passeio bizarro, disse-lhe: - É só se concentrar, companheiro, concentre-se. .. Nossa companheira, no banco da frente, discutia firme e serena com o policial, e foi chamada de safada e palhaça por ele... Lá de trás, tivemos que ouvir isso em silêncio... A companheira. E continuava contestando e resistia bravamente. Minutos antes, num gesto de paixão e desprendimento, a companheira D. lançara de volta um jarro de mágoas que um soldado romano havia atirado em nós, e o jarro enfumaçava a rua... E era como um incenso, incenso de repressão...
Em certa altura da Batalha, tive a impressão de que a repressão do estado pesa de forma mais contundente sobre aqueles que têm a pele mais escura, ou menos clara, como queiram... Ouvi relatos da companheira G. voando pelos ares, enquanto eu era “conduzido” (recebendo uma “gravata”) com o corpo dobrado para frente, como em gesto de obediência e submissão... Não houve ofensa racial, de fato, mas houve tratamento racial; ali eu fui, sem dúvida, um escravo sendo capturado por um capitão do mato. O meu Black voava pelo ar, de pé para a luta. Vale dizer que aquela ocupação era negra. Neste país, o poder senti-se mais a vontade para se exercer sobre os não-brancos. Estávamos ali, e pessoas brancas e de belos olhos também lutavam e resistiam bravamente, e sofriam, e eram esmagados... E havia beleza e horror naquilo tudo!



Sim, esmagados em plena a democracia, a ditadura continua para os pobres em geral e para os negros em específico.




Por fim chegamos, e após uma eternidade saímos. E quando saímos tocava em algum canto da cidade uma canção do Bob Dylan, e sabíamos então que estávamos livres... Livres agora... Abraçamo-nos todos e todas, durante todo processo amparados por um bravo advogado, o companheiro e Dr. A.P, homem de meia-idade que trazia nos olhos o brilho vivo da ideologia, e animados pelo encorajamento de outros lutadores e lutadoras. (E enquanto isso ocorria, muitos outros continuaram na praça de guerra, acompanhando, registrando e orientando todo o processo)
Demos mais um passo em liberdade, e de repente era preciso continuar a luta, a luta continua, alguém diria, havia inúmeras famílias desalojadas... Era preciso ainda ocupar e resistir!

R.Q.

[Texto escrito por um manifestante contra o desalojamento da ocupação de um prédio abandonado do INSS, no Rio de Janeiro.]

segunda-feira, 30 de março de 2009

O Mito de Lilith, Adão e Eva (Parte I)

Em Gênesis 1, homem e mulher são criados iguais e conjuntamente, enquanto na segunda história, em Gênesis 3, a mulher é criada depois do homem e a partir de seu corpo. Segundo as lendas, Lilith era a primeira esposa, que era bem pior que a segunda.
No entanto, a figura escolhida para desempenhar esse papel na lenda judia era originariamente suméria, a resplandecente "Rainha do Céu", cujo nome "Lil" significava "ar" ou "tormenta". Às vezes se tratava de uma presença ambígua, amante dos "lugares selvagens e desabitados", associada também com o aspecto obscuro da Deusa Inanna e com sua irmã Ereskhigal, “Rainha do Mundo Subterrâneo".
No mito hebreu, Lilith, acumulou sem descanso todas as associações à noite e à morte, compreensivelmente rebaixada ao ser percebida desde o ponto de vista de um povo escravizado pela Babilônia.

Uma versão da Criação de Lilith na mitologia hebréia conta que Yahvé fez Lilith, como a Adão, porém no lugar de usar terra limpa, "tomou a sujeira e sedimentos impuros da terra, e deles formou uma mulher. Como era de se esperar, essa criatura resultou ser um espírito maligno". Lilith se converteu a posteriori na primeira esposa de Adão, cuja presença original nunca terminou de eliminar-se totalmente de seu segundo matrimônio. O que falhou no primeiro foi obviamente a independência de Lilith e sua igualdade com Adão, por isso depois criou-se Eva. Em conseqüência, a lenda tacha de insubordinação a atitude por parte de Lilith, pois, segundo a história, se negava a aceitar seu "lugar apropriado" que aparentemente era permanecer debaixo de Adão durante a relação sexual: -"Porque devo ficar debaixo de ti? Por que ser dominada por ti se sou tua igual, já que ambos somos feitos do barro?”, pergunta ela, mas Adão se recusava a igualar as posições. Lilith nervosamente pronuncia o nome de Deus e faz acusações contra Adão e Deus se nega a ajudá-la. Cansada de que não atendessem suas reivindicações de igualdade, Lilith abandona Adão e jura odiá-lo, blasfema contra Deus e alia-se aos inimigos do Eterno, tomada pela cólera.
Não é bom que o homem esteja só[1] Deus disse, então faz Eva e a dá por companheira a Adão: uma mulher feita a partir de seus fragmentos. Enquanto Lilith é descrita de forma negativa, Eva, ao contrário, é apresentada em suas belezas e ornamentos: Lilith é a força destrutiva (odeia todos os homens e frequentemente é relacionada a abortos e a morte de recém-nascidos) e Eva é a construtiva (a dócil mãe da humanidade). Mas Eva também se mostrará imperfeita, ela carregará a culpa pela perda do Paraíso e pelo erro de Adão. É culpada pela maldição/punição da mulher “com dor terás filhos; e o teu desejo será para teu marido, e ele te dominará”[2] e do homem “No suor do teu rosto comerás o teu pão.[3]”.

E, esta é a informação que nos é passada pelo cristianismo, isto é, que a mulher possui uma imperfeição inerente, devida a sua natural inferioridade e sua incapacidade de distinguir o bem do mal. Tais afirmações foram codificadas no psiquismo feminino, fazendo com que todas as mulheres se tornassem estigmatizadas com esta identidade negativa. Foi deste modo, que o feminino se viu reduzido ao submisso e ao incapaz. A submissão foi então, imposta culturalmente a todas as mulheres, que distorceu intencionalmente os aspectos femininos com o intuito de reprimir e estabelecer uma sociedade patriarcal.

O mito não é teológico, é puramente social. Em uma sociedade paternalista, Lilith é reprimida para dar lugar a Eva. Eva representa a mulher moldada pelo homem: ela é o modelo permitido pela ética judaico-cristã. Eva, como mulher, está totalmente alienada, não é nada mais do que uma fêmea de Adão e não a imagem da parte feminina de Deus “Esta agora é osso dos meus ossos e carne da minha carne; está será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada[4].”. Eva é uma mulher muda, a sombra de uma mulher, quase um fantasma. A mulher real é Lilith.

[1] In Gênesis capitulo 2, versículo 18;

[2] In Gênesis capitulo 3, versículo 16;
[3] In Gênesis capitulo 3, versículo 19;
[4] In Gênesis capitulo 2, versículo 23;
Baseado nos textos: Lilith: A Deusa da Noite de Rosane Volpatto, Lilith: A Rainha da Noite de Charles Franklin de Faria e Lilith: O Templo da Lua Negra (autor desconhecido).

domingo, 8 de março de 2009

Manifesto Dia Internacional da Mulher

Nós não vamos pagar por essa crise!
Mulheres livres! Povos soberanos!

Neste 8 de março de 2009, levantamos nossas bandeiras contra o capitalismo, o imperialismo, o machismo, o racismo e a lesbofobia. Estamos nas ruas para afirmar o que queremos construir a partir do feminismo: um mundo livre de exploração, desigualdades e discriminação. Por uma transformação radical com igualdade, autonomia, liberdade e soberania popular!

Feministas contra o capitalismo patriarcal!

As crises financeira, econômica, ambiental e alimentar que afetam o planeta e nossas vidas não são fenômenos isolados. Trata-se de uma crise global, gerada por esse modelo de desenvolvimento, baseado na superexploração do trabalho e na especulação financeira. Uma de suas bases de sustentação é a opressão das mulheres, que combina machismo e capitalismo, transformando tudo em mercadoria e colocando preço inclusive em nossos corpos.

Não acreditamos em respostas superficiais para a crise. Somos contra os milhões retirados dos fundos públicos para salvar bancos e grandes empresas. Isso gera mais concentração de riqueza e reproduz o sistema capitalista patriarcal. Também somos contra qualquer tentativa de retirada dos direitos trabalhistas e de redução de salários, propagandeadas como soluções para a crise econômica. Queremos investimentos públicos que garantam as vagas de trabalho já existentes, que ampliem a oferta de vagas com carteira assinada e reforcem a rede de direitos sociais. Nós, mulheres feministas, afirmamos: as mulheres não vão pagar por esta crise!

É urgente avançarmos na construção de alternativas socialistas a este modelo. Em vez dos agrocombustíveis e da privatização da natureza, defendemos mudanças na forma de produzir alimentos, a redução do padrão de consumo e a produção descentralizada de energia. Afirmamos que os bens comuns de nosso território ? incluindo a água, a biodiversidade e o petróleo encontrado na camada do pré-sal ? são do povo brasileiro e devem ser utilizados para garantir desenvolvimento social e econômico de toda a população. A resposta à crise alimentar não pode vir dos transgênicos, e sim da reforma agrária, da produção agroecológica e da garantia de nossa soberania alimentar.

Por um mundo com igualdade para todas as mulheres!

Construir a igualdade em nossa sociedade passa por valorizar o trabalho das mulheres e garantir sua autonomia econômica. Assim, defendemos a valorização do salário mínimo e lutamos por um modelo de proteção social solidário, universal e inclusivo, com direito à saúde, assistência social e aposentadoria digna para todos e todas. Hoje, existem no Brasil mais de 40 milhões de pessoas fora da previdência social. Dessas, 30 milhões são mulheres. Por isso, somos contra a proposta do governo federal, em discussão na reforma tributária, de desvincular todo o sistema de seguridade social de suas fontes de financiamento. Isso resultará num corte de 40% no orçamento da seguridade social, que representa a perda de R$ 24 bilhões anuais no orçamento da previdência.

Para conquistar igualdade, é preciso ampliar os serviços públicos. Para isso, é preciso parar com a privatização de unidades de saúde e das creches municipais, impulsionadas pelos governos municipal e estadual da coligação DEM/PSDB. Se o Estado não garante direitos sociais fundamentais como estes, aumenta o trabalho de cuidados com as pessoas, que é realizado cotidianamente por nós, mulheres. Lutamos para que esse trabalho seja dividido com os homens e com a sociedade.

Queremos igualdade para todas as mulheres. Por isso, combatemos o racismo em todas as suas manifestações e a banalização da imagem da mulher veiculada na mídia. Essa imagem vendida pela indústria cultural contribui para mercantilizar nossas vidas e reflete a desigualdade e a violência que sofremos dia a dia. Defendemos, assim, o controle social e a democratização dos meios de comunicação.

Em luta por autonomia e liberdade!

Vivemos um momento de criminalização das mulheres, no qual a luta por nossa autonomia tem sido duramente atacada. Em vários estados, mulheres têm sofrido perseguições, humilhações e até condenações criminais por terem realizado aborto. No Congresso Nacional, está para ser instaurada uma CPI do aborto, cujo resultado trará apenas mais perseguição às mulheres.

A maternidade deve ser uma decisão consciente, não uma obrigação. Criminalizar o aborto não impedirá que ele aconteça. Pelo contrário. Manter o aborto na ilegalidade condena as mulheres pobres ? sobretudo jovens e negras ? a se submeterem a práticas inseguras para interromper uma gravidez indesejada. Seguiremos nas ruas de todo o país, mobilizadas contra a criminalização das mulheres e pela legalização do aborto!

Denunciamos todas as manifestações de violência contra a mulher! No estado de São Paulo, o estupro é a segunda causa de morte, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública. As mulheres têm o direito de viver uma vida livre de violência!

Em defesa da paz, da solidariedade e da soberania popular! As guerras mantêm e aprofundam a desigualdade no mundo. Em situações de conflitos armados, as mulheres são vítimas de violações sistemáticas, físicas e psicológicas. Vemos hoje a feminização dos campos de refugiados. Por isso, somos solidárias a todas aquelas que vêem a soberania de seus povos atacada pelo imperialismo, seja na República Democrática do Congo, no Haiti e, sobretudo, na Palestina. Ali, os bombardeios de Israel já deixaram milhares de mortos e feridos, em sua maioria mulheres, idosos e crianças. Nos somamos às vozes de todo o planeta contra o massacre da Palestina, indo às ruas no dia 30 de março expressar nosso repúdio ao governo de Israel.

Também nos solidarizamos aos processos de construção de alternativas em curso na América Latina, que recuperam a soberania dos povos sobre seu território e seus recursos naturais. Estamos em luta por soberania dos povos e liberdade para as mulheres!

Neste 8 de março, estamos todas nas ruas confrontando o sistema capitalista e patriarcal que nos oprime e explora. Nas ruas e em nossas casas, nas florestas e nos campos, no prosseguir de nossas lutas e no cotidiano de nossas vidas, manteremos nossa rebeldia e mobilização!

FONTE: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2009/03/442269.shtml

domingo, 25 de janeiro de 2009

A Deusa desperta dentro de nós


"A Deusa desperta dentro de nós, antes de despertar para o mundo. Devemos tomar consciência da sua existência. Devemos honrá-la, adorá-la, venerá-la, seja qual for o nome que lhe damos. Se o não fizermos estamos a ofender-nos a nós próprias. Ela é a nossa essência feminina. Ela é o poder feminino e a glória espiritual que existe em todas as mulheres e homens.” M.W.

Cada Coração

"Em cada coração há uma
janela para outros corações.
Eles não estão separados,
como dois corpos.
Mas, assim como duas lâmpadas

que não estão juntas,

Sua luz se une num só feixe."

(Jalaluddin Rumi)

domingo, 11 de janeiro de 2009

O que é Religião?

"Aqui estão os sacerdotes; e muito embora sejam meus ini­migos. . . meu sangue está ligado ao deles." (F. Nietzsche, Assim falava Zaratustra).

Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros. Tão raros que os mesmos se espantavam com a sua descrença e a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato o era. tanto assim que não foram poucos os que foram queimados na fogueira, para que sua desgraça não contaminasse os inocentes. Todos eram educados para ver e ouvir as do mundo religioso, e a conversa cotidianamente, este ténue fio que sustenta visões de mundo, confirmava, por meio de relatos de milagres, aparições, visões, experiências místicas, divinas e demoníacas, que este é um universo encantado e maravilhoso no qual, por detrás e através de cada coisa e cada evento, se esconde e se revela um poder espiritual. O canto gregoriano, a música de Bach, as telas de Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, a catedral gótica, a Divina Comédia, todas estas obras são expressões de um mundo que vivia a vida temporal sob a luz e as trevas da eternidade. O universo físico se estruturava em torno do drama da alma humana. E talvez seja esta a marca de todas as religiões, por mais longínquas que estejam umas das outras: o esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido.Mas alguma coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O céu, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apare­ceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em luga­res distantes com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia avançaram triunfalmente, cons­truindo um mundo em que Deus não era necessário como hipótese de trabalho. Na verdade, uma das marcas do saber científico é o seu rigoroso ateísmo metodológico: um biólogo não invoca maus espíritos para explicar epidemias, nem um economista os poderes do inferno pára dar Contas da inflação, da mesma forma como a astronomia moderna, distante de Kepler, não busca ouvir harmonias musicais divinas nas regularidades matemáticas dos astros.
Desapareceu a religião? De forma alguma. Ela permanece e frequentemente exibe uma vitalidade que se julgava extinta. Mas não se pode negar que ela já não pode frequentar aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi expulsa dos centros do saber científico e das câmaras onde se tomam as decisões que concretamente determinam nossas vidas. Na verdade, não sei de nenhuma instância em que os teólogos tenham sido convidados a colaborar na elaboração de planos militares. Não me consta, igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido aproveitada para o desenvolvimento de problemas económicos. E é altamente duvidoso que qualquer industrial, convencido de que a natureza é criação de Deus, e portanto sagrada, tenha perdido o sono por causa da poluição. Permanece a experiência religiosa — fora do “nulo da ciência, das fábricas, das usinas, das armas, do dinheiro, dos bancos, da propaganda, da venda, da compra, do lucro. É compreensível diferentemente do que ocorria em passado muito distante, poucos pais sonhem com carreira sacerdotal para os seus filhos. . . A situauação mudou. No mundo sagrado, a experiência religiosa era parte integrante de cada um, da mesma forma como o sexo, a cor da pele, os membros , a linguagem. Uma pessoa sem religião era uma anomalia .No mundo dessacralizado as coisas se inverteram. Menos entre os homens comuns, externos aos círculos académicos, mas de forma intensa entre aqueles que pretendem já haver passado pela iluminação científica, o embaraço frente à experiência religiosa pessoal é inegável. Por razões óbvias. Confessar-se reli­gioso equivale a confessar-se como habitante do mundo encantado e mágico do passado, ainda que apenas parcialmente. E o embaraço vai cres­cendo na medida em que nos aproximamos das ciências humanas, justamente aquelas que estudam a religião.
Como é isto possível?
Como explicar esta distância entre conheci­mento e experiência?
Não é difícil. Não é necessário que o cientista tenha envolvimentos pessoais com amebas, cometas e venenos para compreendê-los e conhecê-los. Sendo válida a analogia, poder-se-ia concluir que não seria necessário ao cientista haver tido experiências religiosas pessoais como pressuposto para suas investigações dos fenómenos religiosos.O problema é se a analogia pode ser invocada para todas as situações. Um surdo de nascença, poderia ele compreender a experiência estética que se tem ao se ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven? Parece que não. No entanto, lhe seria perfeitamente possível fazer a ciência do compor­tamento das pessoas, derivado da experiência estética. O surdo poderia ir a concertos e, sem ouvir uma só nota musical, observar e medir com rigor aquilo que as pessoas fazem e aquilo que nelas ocorre, desde suas reações fisiológicas até padrões de relacionamento social, consequências de experiências pessoais estéticas a que ele mesmo não tem acesso.Mas, que teria ele a dizer sobre a música? Nada. Creio que a mesma coisa ocorre com a religião. E esta é a razão por que, como introdução à sua l obra clássica sobre o assunto, Rudolf Otto aconselha aqueles que nunca tiveram qualquer experência religiosa a não prosseguirem com a leitura. E aqui teríamos de nos perguntar se existem, realmente, estas pessoas das quais as perguntas reliqiosas foram radicalmente extirpadas. A religião não se liquida com a abstinência dos atos lamentais e a ausência dos lugares sagrados, mesma forma como o desejo sexual não se nina com os votos de castidade. E é quando a dor bate à porta e se esgotam os recursos da técnica que nas pesssoas acordam os videntes, exorcistas, os mágicos, os curadores, os benzedores os sacerdotes, os profetas e poetas, aquele que reza e suplica, sem saber direito a quem. . . então as perguntas sobre o sentido e o sentido da morte, perguntas das horas e diante do espelho. . . O que ocorre freqüência é que as mesmas perguntas religiosas ­do passado se articulam agora, travestidas, por meio de símbolos secularizados. Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma função religiosa. Promessas terapêuticas de paz individual, de harmonia íntima, de liberação da angústia, esperanças de ordens sociais fraternas e justas, de resolução das lutas entre os homens e de harmo­nia com a natureza, por mais disfarçadas que estejam nas máscaras do jargão psicanalítico/psicológico, ou da linguagem da sociologia, da política e da economia, serão sempre expressões dos problemas individuais e sociais em torno dos quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos forçados a concluir não que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os deuses e esperanças religiosas ganharam novos nomes e novos rótulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos. - É fácil identificar, isolar e estudar a religião como o comportamento exótico de grupos sociais restritos e distantes. Mas é necessário reconhe­cê-la como presença invisível, sutil, disfarçada, que se constitui num dos fios com que se tece o acontecer do nosso cotidiano. A religião está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir. O estudo da religião, portanto, longe de ser uma janela que se abre apenas para panoramas externos, é como um espelho em que nos vemos. Aqui a ciência da religião é também ciência de nós mesmos: sapiência, conhecimento saboroso. Como o disse poeticamente Ludwig Feuerbach:
“A consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento. A religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensa­mentos íntimos, a confissão aberta dos seus segredos de amor.”

E poderíamos acrescentar: e que tesouro oculto não é religioso? E que confissão íntima de amor não está grávida de deuses? E quem seria esta pessoa vazia de tesouros ocultos e de segredos de amor?

(em O que é Religião, Rubem Alves, Coleção Primeiros Passos)